O peregrino de Terrence Malick

Paul Elie (citado por Gregory Wolfe em “The Operation of Grace”) descreve a Peregrinação como uma jornada empreendida sob a luz de uma história ou pela ocorrência de um grande evento. O peregrino escuta o relato e parte em busca da evidência, não para confirmar, simplesmente, a experiência alheia, em primeira mão; ele quer ser modificado pela experiência. A história que desencadeia a peregrinação neste “Cavaleiro de Copas”, de Terrence Malick, é mencionada logo no começo do filme: além da narração dos trechos iniciais de “O Peregrino”, de John Bunyman, ouvimos o pai do Cavaleiro, vivido por Brian Dennehy, a relembrar o que costumava contar ao filho:

“Lembra-se da história que eu contava, quando você era menino? Sobre um jovem príncipe, um cavaleiro, enviado pelo seu pai, O Rei do Leste, a Oeste do Egito, para encontrar uma pérola nas profundezas do Oceano? Quando ele chegou, as pessoas serviram-no uma bebida que o desmemoriou. Ele se esqueceu de que era filho do Rei, se esqueceu da pérola e caiu em sono profundo. Mas o Rei não se esqueceu de seu filho”

Oceano e deserto são dois dos elementos simbólicos mais fortes deste e de outros filmes de Malick.

Se o cinema é pródigo em heróis romantizados capazes, por si mesmos, de epifanias súbitas, Terrence Malick, ao transformar o protagonista de seu “O Cavaleiro de Copas” em peregrino, deixa claro que a peregrinação não é empreendida solitariamente. Porque o que está em jogo é a morte do espírito, ocasionada pela incapacidade de se abrir ao transcendente, de perceber a glória que nos circunda. Para acessar o amor que nos permeia é necessário nos abrirmos generosamente à vida e ao outro. É necessário nos comprometermos em nossas relações.

Procuramos estabelecer identidades coerentes através do tempo, e a memória autobiográfica pode servir à elaboração, realçando percepções individuais de consistência pessoal ao longo dos anos. No entanto, o medo de e a dificuldade para formar vínculos sólidos e estáveis transforma a vida em história incoerente, fragmentada por uma sucessão inarticulada de eventos transitórios que nos afasta da realidade do Amor que nunca muda. Tais oscilações contínuas fraturam o senso de identidade; é o que o protagonista nos diz, logo no início do filme:

“Todos esses anos, vivendo a vida de alguém que não conhecia”

“Cavaleiro de Copas” é a história, contada por meio de imagens assombrosas, de uma peregrinação numa terra desolada (ambição, promessas falsas, amores fáceis), entorpecida e fascinada por si mesma, em busca desta pérola, a “divina presença” esquecida (em nós, ao nosso redor). Ao contrário do que apregoa o mantra moderno, não é a jornada que importa, mas o ponto de chegada. O ponto de chegada do peregrino, interpretado por Christian Bale, é o início de sua Vida.

3 comentários

  1. Assisti no Netflix (uma pena não ter sido lançado nos cinemas nacionais). Belo comentário. “Ao contrário do que apregoa o mantra moderno, não é a jornada que importa, mas o ponto de chegada. O ponto de chegada do peregrino, interpretado por Christian Bale, é o início de sua Vida”. Preciso pensar sobre isso, pois não deixa de ser um belo mantra moderno.

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